sábado, 7 de abril de 2012

CRÔNICA DE UMA SAUDADE CRÔNICA

                                                                                                  CHICO DE ASSIS







Você é um filho ruim, um filho ruim” – disse-me o velho em seu delírio, enquanto eu tentava conter seu corpo magro em minhas mãos, para impedir-lhe de levantar em meio a noite, uma rara noite em que não suportei ficar acordado e o encontrei quase de pé, descendo do leito do hospital público onde estava internado, recuperando-se de uma parada cardíaca. Era a segunda noite que passava a seu lado naquele hospital (antes se encontrava em hospital particular, com assistência completa, mas valendo os olhos da cara e o médico amigo que o havia atendido na situação de emergência dissera-me convicto, vocês vão ficar só de cuecas, para cobrir as despesas e provavelmente não vão conseguir, se ele ficar por aqui para o período de recuperação, que imagino no mínimo de vinte dias). Sugeriu então que o transferíssemos para um da rede pública, onde ele cuidaria de garantir-lhe o essencial e o essencial incluía acompanhamento para as noites. Por ser o único da família em condições de fazê-lo, já que as irmãs, casadas, com filho ou marido para cuidar, não dispunham de tempo naquele horário, eu ali estava, depois de um cochilo que não consegui evitar, acalmando o velho aos poucos, calma papai, calma papai, é para o seu bem, até vê-lo acalmar-se de fato e quase sem forças balbuciar ainda, um filho ruim, antes que a enfermeira chegasse e o pusesse de volta a cama, para uma lavagem, é o que está incomodando-o, o intestino funciona lentamente e ele se enche de gases, é normal, vamos cuidar disso.

Eu voltei ao beliche onde antes me encontrava, emocionado com o incidente, recriminando-me por não haver conseguido evitar a sonolência, e pensando no que faz essa aproximação, ditada inicialmente pelo sangue e depois pelo convívio, seja qual seja, sendo o meu com o velho marcado por altos e baixos, eu deveria dizer baixos e altos, porque haveria de assinalar duas etapas bem distintas, a primeira compreendida no período de infância e adolescência, quando ele era apenas uma sombra severa, que não se mexia em manifestações de carinho e apenas acompanhava o que julgava essencial acompanhar, como vão os estudos dele? passou de ano? por que vive sempre na rua?

A segunda fase, na idade adulta, quando foi uma rocha de paciência e solidariedade, acompanhando-me em todos os percalços da longa prisão política a que fui submetido e esse acompanhamento implicava participação em rituais que o enchiam de vergonha, como a submissão às revistas impostas para que pudesse entrar como visita. Ele aceitava resignado o que lhe parecia uma humilhação, ele um homem de bem, fiel cumpridor dos seus deveres, sendo apalpado pelos esbirros policiais, que com o tempo foram até compreendendo a inutilidade da tarefa, aquele velhinho tão cordial não merecia tratamento tão extemporâneo e o foram deixando incólume, o senhor fica ai no quarto alguns minutos, depois sai, não vamos mais revistá-lo. Suportaria tudo, contanto pudesse usufruir das horas permitidas ao lado do filho, embora não conseguissem os dois expressar em palavras o que estivessem sentindo e se limitassem a lacônicos comentários, e a vida como vai?, ele perguntava, bem, bem, eu respondia, estamos começando a arrumá-la, mas aqui há tempo pra tudo.   

ÚLTIMO DESEJO

                                                                                             CHICO DE ASSIS





Se há de haver alguma
seja alvirrubra a bandeira
que me cubra e me conduza
à última morada.

Não quero pompas
nem choro nem vela.
Apenas a cor rubra da guerra
que pelejei sem ganhar
e o alvo manto da paz
que enfim ganhei!