sábado, 31 de março de 2012

A NOITE DE 21 ANOS!

                                                                                    CHICO DE ASSIS










                     0 1o DE ABRIL DE 1964: a imagem que mais me ocorre ao lembrar esse dia é a minha saída do prédio da Agência Nacional (o mesmo dos Correios na Av. Guararapes), onde trabalhava como repórter-auxiliar, acompanhado de meu irmão mais velho (também metido em subversão à época) e de velhos comunistas que trabalhavam na Agência. As ruas já respiravam o clima de golpe, o Palácio das Princesas estava cercado por tropas do Exército, o governador Miguel Arraes assumia a digna posição que o projetaria para a História, recusando-se a renunciar ou a aderir aos golpistas, e eu saía do trabalho meio assustado com tudo, disposto a sondar o ambiente. Não podia supor que toda aquela estrutura – que havia levado o velho Prestes, sete dias antes, a dizer que as conquistas sociais eram irreversíveis e que nada deteria o avanço do povo – estivesse desmoronando implacavelmente aos nossos pés.

                  Mal cheguei na ponte principal que corta a cidade, quando me deparei com a passeata de estudantes, bancários e alguns poucos trabalhadores de outras categorias, que se dirigiam ao Palácio, em solidariedade ao governador sitiado. Naturalmente, me incorporei a ela. Quando chegamos a esquina da Guararapes com Dantas Barreto, a um quarteirão do Palácio, as tropas do Exército se movimentaram em nossa direção. Pusemo-nos a cantar o Hino Nacional e a desenrolar as bandeiras nacionais que conduzíamos, na esperança de que o gesto paralisasse as tropas, como ocorrera em outras escaramuças anteriores.

                   Acontece que o clima era de dissolução da ordem constitucional e quem começara a rasgar a Constituição em outros pontos do país, não iria deixar de continuar rasgando-a, por conta de trezentos gatos pingados recifenses, cantando com todo orgulho o hino da pátria. Várias rajadas de metralhadora foram a resposta que tivemos aos nossos gritos de fascistas e de não passarão – pra não perder a oportunidade de copiar palavras de ordem vindas de outras realidades, vício incorrigível das esquerdas em todos os tempos. Em meio a uma poça de sangue, esparramou-se o corpo de Jonas Albuquerque, menino poeta de 16 anos, meu colega no Colégio Estadual de Pernambuco, que teve o queixo arrancado pela rajada. Um pouco mais adiante, o corpo de Ivan Aguiar, estudante de Engenharia, enrolado numa ensanguentada bandeira nacional. Só fui parar de correr em casa (minha família morava à época em bairro central), para arrumar uma pequena mochila, ouvir o choro de minha mãe e as eternas admoestações do meu pai, “quem não obedece ao pai, termina obedecendo à polícia”.
               
                          Meu pai era o velho protótipo do funcionário público, com concepções diametralmente opostas às minhas e vida completamente diferente em tudo da que eu desejava ter. Tive com ele uma relação que pode ser considerada boa, para os padrões da época e da camada social a que pertencíamos – a nossa tradicional, mesquinha e angustiada classe média, quando mais chegada pra baixa do que pra alta. Mas as lacunas nessa relação eram evidentes e alguma coisa mal resolvida acompanhou todo o seu transcurso, tanto que o romance que escrevi, narrando as peripécias da nossa geração (“A Trilha do Labirinto”), começa e termina com um diálogo entre pai e filho (observação feita casualmente por uma amiga, que me flagrou envolvido nas artimanhas do meu inconsciente).

               Deixei os dois em pânico e saí meio sem rumo, na expectativa de encontrar alguma orientação, um pouquinho mais ajuizada que a recebida por um vulto agalegado, que conhecia das assembléias estudantis, logo depois que saí de casa: “agora é pegar em armas, companheiro; faca, revólver, facão e se juntar no campo ao velho Griga!”. O velho Griga era o velho Gregório Bezerra, que naquele exato momento era arrastado pelas ruas de Casa Forte, uma corda amarrada ao pescoço, para gáudio dos torturadores recém-vitoriosos e escândalo das tradicionais famílias do bairro, que começavam a descobrir o tipo de sistema que elas mesmas haviam engendrado, nas famosas passeatas com Deus, pela Família e pela Liberdade, do pré-64. Eu me limitei a rir diante do companheiro (espécie de reação nervosa que me ocorre quando não sei bem o que fazer) e segui meu caminho ou descaminho. A noite se abateu literalmente, não só sobre o Recife. E duraria 21 anos!