(Sobre
Marina e Benício,
personagens
do meu novo romance Água de Mortas)
Por
Isadora Salazar Soares
(Isadora Avertano-Rocha)
Em
Aula de Dramaturgia Prof. Jô Bilac.
30/III/12
Elevador
de um grande prédio comercial urbano. Próximo da hora do almoço. O
elevador desce e pára em praticamente todos os andares. Em cada
andar onde o elevador pára entram e saem de seu interior secretárias
de sandália rasteira, executivos com mochilas de computador, médicas
que procuram a chave do carro na bolsa, crianças mimadas que
insistem em sentar no assoalho enquanto um constrangido avô deixa
cair exames de ressonância magnética no chão, advogados que não
interrompem conversas ao celular e um dentista vestido de branco,
ainda com a marca de seus óculos protetores sobre o rosto e cheiro
de bactericida de consultório. Uma mulher de lenço na cabeça
soluça e tenta disfarçar suas lágrimas escondida em seus óculos
escuros. A maioria diz bom dia ou boa tarde ao entrar no elevador –
alguns respondem de forma mais ou menos cordial e comentam sobre
ainda ser bom dia já que não almoçaram, outros simplesmente seguem
no cuidar de suas próprias vidas e nada respondem. O diálogo entre
os personagens se inicia no térreo. Há apenas três indicações de
ação em todo o texto. Não há indicação de sexo ou
caracterização desses interlocutores.
PERSONAGEM
1-
(AO FUNDO DO ELEVADOR, SEGURA FIRME O BRAÇO DE SEU INTERLOCUTOR):
Não vá!
PERSONAGEM
2-
(SURPRESO):
Por quê? (Tenta reconhecer a pessoa que o interceptou.Procura algo
nos bolsos: os óculos, talvez).
PERSONAGEM
1- Precisamos
seguir em frente.
PERSONAGEM
2- Como?
Desculpe, mas acredito que você tenha me confundido com alguém.
PERSONAGEM
1- Não,
veja, precisamos seguir em frente. Olha, você vai sair daqui agora,
dobrar uma esquina e depois a outra e quando finalmente achar que
dobrou o quarteirão inteiro nós vamos nos encontrar novamente.
Então, por que não seguir em frente a partir daqui?
PERSONAGEM
2- Olhe,
veja você: acredito mesmo que eu tenha sido confundido com alguém
da sua vida, mas essa realmente não é a hora. Há pessoas que me
esperam lá fora.
PERSONAGEM
1 –
Pessoas?
Quem? Quem pode ser tão importante nesse mundo a ponto de não
seguires em frente comigo? Quem? O sol que esturrica a pele do dia e
condena essa cidade imunda a mais cruel voragem da vida? Ah, não, my
darling,
quem? Quem pode ser tão importante? Você? Marina ? Marina está
morta, entenda isso!
PERSONAGEM
2- Morta...
PERSONAGEM
1 - E
Benício, o teu grande amor, também se foi com ela. Mortos! Quem,
então? Me diga? Te desafio! Mortos.
PERSONAGEM
2- Olha
só, vamos fazer um negócio: você me deixa sair daqui e eu tomo um
café contigo. Pronto, um café e você verá que tudo se dissipa,
toda essa maldita história de Benício e Marina, tudo se esclarece.
Um café apenas...
PERSONAGEM
1- Café?
Mas eu nem sonho em tomar um café contigo. E alimentar comida que já
é comida? Olha, dear,
isso aqui é um monstro que devora homens, mulheres e criancinhas e
já vamos a tempos na barriga dele.
PERSONAGEM
2-
Criancinhas...
PERSONAGEM
1-Sim,
as mesmas catarrentas que nos perseguem e que sempre nos perseguiram.
PERSONAGEM
2- Olha,
deixa eu te explicar o que você já não está mais em condições
de entender: olha para a frente. Você vê ? Isso aqui é apenas um
ponto de passagem. Nem ao menos é o começo ou o final. A chegada e
a partida não estão aqui. Você vê ? A chegada e a partida estão
ali, na entrada do prédio. E esse Benício e essa Marina de quem
você tanto fala eu nem sei se existem. Eles jamais existiram. Agora
me deixa sair que o que eu sei mesmo é que há alguém lá fora que
me espera além de mim!
PERSONAGEM
1- Mas
está tão quente lá fora... Olha que tu podes pegar uma insolação.
PERSONAGEM
2 – Que
nem aquela vez na praia... Lembra? Ficamos vermelhos até a pele
despregar do rosto. E era um dia lindo. Mas
não, vamos,
é só dar um passo e estaremos longe daqui.
PERSONAGEM
1- Mas
na próxima esquina há o encontro. E aí vamos virar uma e outra vez
até a próxima esquina. Virar todo um novo quarteirão, esbarrar em
uma ou outra pessoa até que estaremos de volta aqui.
PERSONAGEM
2 – Sim,
apenas a um passo da propriedade do tempo. Tempo. Do tempo... Mas
venha, vamos, venha, eu te ajudo. É só um passo...
PERSONAGEM
1- Ajuda?
Saio contigo então.
PERSONAGEM
2- Sim.
Mas, espera, o que é isso? O que diabos é isso ?
PERSONAGEM
1-
Descemos ao fosso. Passamos pelo subsolo muito rápido e agora são
apenas os freios próximos ao fosso que nos sustentam.
PERSONAGEM
2 – Freios?
Não entendo? E por acaso tu conheces de mecânica de elevadores
agora?
PERSONAGEM
1- Não.
Apenas sei como são os intestinos dessa engrenagem. Sabes, não é?
Eu já estive aqui. Nessa coisa. Nessa coisa que nos devora vivos e
nos engole como língua de fogo no interior de aeronave em acidente
aéreo. Aqui. Essa coisa.
(PEQUENA
PAUSA)
PERSONGEM
2 -
Shiiiiii.
Ouve!
PERSONAGEM
1 – O
que ?
PERSONGEM
2 - Peraí,
ouve: há chuva lá fora. Sentes o cheiro?
PERSONAGEM
1
– Chuva ?
PERSONGEM
2- Sim.
Chuva. Ouves as sombrinhas sendo abertas aí em cima?
PERSONAGEM
1- Não
ouço nada. Não ouço nada a não ser a ti. Nunca pude ouvir alguém
por mais tempo em todo esse tempo.
PERSONAGEM
2- Não.
Ouve agora! Agora que as luzes se apagaram. Toca. Toca essas paredes.
Sentistes? É água. É água que escorre por essas paredes e já
encharca os meus pés. Toca? Vamos, sente!
PERSONAGEM
1- Não,
é sangue. Sinto o cheiro de sangue.
PERSONAGEM
2- Não,
isso é cheiro de terra molhada. Terra molhada lá de fora, da
cascata e do jardim que ficam bem na entrada do prédio.
PERSONAGEM
1- Não.
É sangue. Reconheço o cheiro de sangue. Não ouves as crianças
mortas lá fora protegidas sob as sombrinhas que se abrem?
PERSONAGEM
2- Não,
é água e ela já bate em nossa cintura. Vamos! Pega essa bengala,
empurra o alçapão que está acima de ti e já já estaremos fora
desse poço.
PERSONAGEM
1- Não.
Não vejo essa saída. Está escuro aqui e agora eu esbarro em mãos,
pernas e blazeres de pessoas que não sei quem são. Elas viram uma
esquina e outra esquina, nos esbarram e sangram e eu nem sei quem
elas são.
PERSONAGEM
2- E
elas já respiram?
PERSONAGEM
1- Não.
Não sei. Acho que não.
PERSONAGEM
2 – Olha,
não faz isso comigo. Eu não quero mais esbarrar em ninguém e a
água já me cobre a boca.
PERSONAGEM
1- Não,
não faça isso você comigo agora. Olha, é só tu te moveres.
Empurra com força o teu braço para cima que a tampa do alçapão se
desloca e se abre para nós.
PERSONAGEM
2- Não.
Não posso. Vá você, se quiser porque eu não quero mais esbarrar
em ninguém e afinal precisamos seguir em frente, e dobrar uma
esquina, depois outra e sangrar e depois dobrar a outra. Olha, vem.
Eu te ajudo a sair daqui que a chuva ta engrossando.
PERSONAGEM
1- E
abandonar aqui todos os cadáveres que nos cercam?
PERSONAGEM
2- Eles
sempre estiveram ao nosso lado, meu amor.
FIM