CHICO DE ASSIS
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1o
DE ABRIL DE 1964: a imagem que mais me ocorre ao lembrar esse dia é
a minha saída do prédio da Agência Nacional (o mesmo dos Correios
na Av. Guararapes), onde trabalhava como repórter-auxiliar,
acompanhado de meu irmão mais velho (também metido em subversão à
época) e de velhos comunistas que trabalhavam na Agência. As ruas
já respiravam o clima de golpe, o Palácio das Princesas estava
cercado por tropas do Exército, o governador Miguel Arraes assumia a
digna posição que o projetaria para a História, recusando-se a
renunciar ou a aderir aos golpistas, e eu saía do trabalho meio
assustado com tudo, disposto a sondar o ambiente. Não podia supor
que toda aquela estrutura – que havia levado o velho Prestes, sete
dias antes, a dizer que as conquistas sociais eram irreversíveis e
que nada deteria o avanço do povo – estivesse desmoronando
implacavelmente aos nossos pés.
Mal
cheguei na ponte principal que corta a cidade, quando me deparei com
a passeata de estudantes, bancários e alguns poucos trabalhadores de
outras categorias, que se dirigiam ao Palácio, em solidariedade ao
governador sitiado. Naturalmente, me incorporei a ela. Quando
chegamos a esquina da Guararapes com Dantas Barreto, a um quarteirão
do Palácio, as tropas do Exército se movimentaram em nossa direção.
Pusemo-nos a cantar o Hino Nacional e a desenrolar as bandeiras
nacionais que conduzíamos, na esperança de que o gesto paralisasse
as tropas, como ocorrera em outras escaramuças anteriores.
Acontece
que o clima era de dissolução da ordem constitucional e quem
começara a rasgar a Constituição em outros pontos do país, não
iria deixar de continuar rasgando-a, por conta de trezentos gatos
pingados recifenses, cantando com todo orgulho o hino da pátria.
Várias rajadas de metralhadora foram a resposta que tivemos aos
nossos gritos de fascistas e de não passarão – pra não perder a
oportunidade de copiar palavras de ordem vindas de outras realidades,
vício incorrigível das esquerdas em todos os tempos. Em meio a uma
poça de sangue, esparramou-se o corpo de Jonas Albuquerque, menino
poeta de 16 anos, meu colega no Colégio Estadual de Pernambuco, que
teve o queixo arrancado pela rajada. Um pouco mais adiante, o corpo
de Ivan Aguiar, estudante de Engenharia, enrolado numa ensanguentada
bandeira nacional. Só fui parar de correr em casa (minha família
morava à época em bairro central), para arrumar uma pequena mochila,
ouvir o choro de minha mãe e as eternas admoestações do meu pai,
“quem não obedece ao pai, termina obedecendo à polícia”.
Meu
pai era o velho protótipo do funcionário público, com concepções
diametralmente opostas às minhas e vida completamente diferente em
tudo da que eu desejava ter. Tive com ele uma relação que pode ser
considerada boa, para os padrões da época e da camada social a que
pertencíamos – a nossa tradicional, mesquinha e angustiada classe
média, quando mais chegada pra baixa do que pra alta. Mas as lacunas
nessa relação eram evidentes e alguma coisa mal resolvida
acompanhou todo o seu transcurso, tanto que o romance que escrevi, narrando as peripécias da nossa geração (“A Trilha do
Labirinto”), começa e termina com um diálogo entre pai e filho
(observação feita casualmente por uma amiga, que me flagrou
envolvido nas artimanhas do meu inconsciente).
Deixei os dois em pânico e saí meio sem rumo, na expectativa de encontrar
alguma orientação, um pouquinho mais ajuizada que a recebida por um
vulto agalegado, que conhecia das assembléias estudantis, logo
depois que saí de casa: “agora é pegar em armas, companheiro;
faca, revólver, facão e se juntar no campo ao velho Griga!”. O
velho Griga era o velho Gregório Bezerra, que naquele exato momento
era arrastado pelas ruas de Casa Forte, uma corda amarrada ao
pescoço, para gáudio dos torturadores recém-vitoriosos e escândalo
das tradicionais famílias do bairro, que começavam a descobrir o
tipo de sistema que elas mesmas haviam engendrado, nas famosas
passeatas com Deus, pela Família e pela Liberdade, do pré-64. Eu me
limitei a rir diante do companheiro (espécie de reação nervosa que
me ocorre quando não sei bem o que fazer) e segui meu caminho ou
descaminho. A noite se abateu literalmente, não só sobre o Recife.
E duraria 21 anos!
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