CHICO DE ASSIS
“Você
é um filho ruim, um filho ruim” – disse-me o velho em seu
delírio, enquanto eu tentava conter seu corpo magro em minhas mãos,
para impedir-lhe de levantar em meio a noite, uma rara noite em que
não suportei ficar acordado e o encontrei quase de pé, descendo do
leito do hospital público onde estava internado, recuperando-se de
uma parada cardíaca. Era a segunda noite que passava a seu lado
naquele hospital (antes se encontrava em hospital particular, com
assistência completa, mas valendo os olhos da cara e o médico amigo
que o havia atendido na situação de emergência dissera-me
convicto, vocês vão ficar só de cuecas, para cobrir as despesas
e provavelmente não vão conseguir, se ele ficar por aqui para o
período de recuperação, que imagino no mínimo de vinte dias).
Sugeriu então que o transferíssemos para um da rede pública, onde
ele cuidaria de garantir-lhe o essencial e o essencial incluía
acompanhamento para as noites. Por ser o único da família em
condições de fazê-lo, já que as irmãs, casadas, com filho ou
marido para cuidar, não dispunham de tempo naquele horário, eu
ali estava, depois de um cochilo que não consegui evitar, acalmando
o velho aos poucos, calma papai, calma papai, é para o seu bem, até
vê-lo acalmar-se de fato e quase sem forças balbuciar ainda, um
filho ruim, antes que a enfermeira chegasse e o pusesse de volta a
cama, para uma lavagem, é o que está incomodando-o, o intestino
funciona lentamente e ele se enche de gases, é normal, vamos cuidar
disso.
Eu
voltei ao beliche onde antes me encontrava, emocionado com o
incidente, recriminando-me por não haver conseguido evitar a
sonolência, e pensando no que faz essa aproximação, ditada
inicialmente pelo sangue e depois pelo convívio, seja qual seja,
sendo o meu com o velho marcado por altos e baixos, eu deveria dizer
baixos e altos, porque haveria de assinalar duas etapas bem
distintas, a primeira compreendida no período de infância e
adolescência, quando ele era apenas uma sombra severa, que não se
mexia em manifestações de carinho e apenas acompanhava o que
julgava essencial acompanhar, como vão os estudos dele? passou de
ano? por que vive sempre na rua?
A
segunda fase, na idade adulta, quando foi uma rocha de paciência e
solidariedade, acompanhando-me em todos os percalços da longa prisão
política a que fui submetido e esse acompanhamento implicava
participação em rituais que o enchiam de vergonha, como a submissão
às revistas impostas para que pudesse entrar como visita. Ele
aceitava resignado o que lhe parecia uma humilhação, ele um homem
de bem, fiel cumpridor dos seus deveres, sendo apalpado pelos
esbirros policiais, que com o tempo foram até compreendendo a
inutilidade da tarefa, aquele velhinho tão cordial não merecia
tratamento tão extemporâneo e o foram deixando incólume, o senhor
fica ai no quarto alguns minutos, depois sai, não vamos mais
revistá-lo. Suportaria tudo, contanto pudesse usufruir das horas
permitidas ao lado do filho, embora não conseguissem os dois
expressar em palavras o que estivessem sentindo e se limitassem a
lacônicos comentários, e a vida como vai?, ele perguntava, bem,
bem, eu respondia, estamos começando a arrumá-la, mas aqui há
tempo pra tudo.
Muito emocionante, Chico.
ResponderExcluirabs