terça-feira, 20 de março de 2012

À FLOR DA RAÇA


                                 Chico de Assis








Essa negra angolana
Moçambicana quem sabe?
é só uma negra
cujo ar de espanto não percebe
que as coisas acontecem
lentamente na esquina do Rossio
dessa Lisboa multietnica
enquanto esse vinho me desce.

As coisas acontecem e florescem
nas entranhas das praças
como aquele casal que de mãos
teatralmente entrelaçadas
leva-as aos lábios
ou fazem-nas recolher
uma lágrima atordoada:

Tu estás assim por conta de ontem?”
- ele diz apoplético
sem ligar à raiva que o sacode
e a mantém trêmula
para enfim se entregar num abraço.

Essa negra também não sabe
que de tão longe venho
para descobrir com ela
e outros dos seus irmãos encontrados
em sussurros e conciliábulos
os segredos entrecruzados da raça
que também são os meus
e os trago recônditos
ah, eu os trago tão vivos
e tão latejantes à flor da pele
que talvez nunca os possa contar.

Essa negra enfim não sabe
o quanto me deu
nesse breve contato
e talvez um dia
os dois venhamos a descobrir
por que fora eu
o único receptáculo
do seu ar atarantado
como o meu.

(em 04 de Abril de 2007, na Praça D. João I, em Lisboa, saboreando o vinho tinto “Porca de Murça”) 

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