quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012
terça-feira, 28 de fevereiro de 2012
Crônicas de Segunda
Chico de Assis
UMA VIDA SEVERINA
Seu nome é
Sujinho. Ninguém sabe por que nem quem o apelidou assim. Dizem que a
alcunha foi se fixando, entre os casais que enojados viam-no empurrar
o dedo na carne dos cocos que abre para vender. O que se sabe ao
certo é que todos os dias, chova ou faça sol, ele sai com sua
carrocinha de coco pelas areias da praia de Pau Amarelo. Faz um longo
percurso. Falam que do Janga até as mediações da praia de Maria
Farinha. Não menos de 6 kms, com certeza.
Sujinho
percorre essa distancia, indo e vindo, conversando com o vento.Se
alguém um dia quiser fazer um tratado sobre a solidão é só tentar
acompanhá-lo em sua inesgotável fabulação com um companheiro
imaginário. Ninguém decifra o que ele fala. Nem precisa. Juro que
certa vez tentei. Até perceber que aquela era apenas uma forma de se
sentir acompanhado. Excluído socialmente, rejeitado pelos
circunstantes que apenas o olham passar pela areia da praia, Sujinho
ignora a todos, falando um dialeto que só ele entende.
Certa vez
ele se aproximou de mim e de Beta – minha companheira atual e, se
Deus quiser, afinal, minha companheira pra sempre. Estávamos
sentados numa das inúmeras barracas da praia e ele se aproximou para
nos oferecer um coco. Pelo menos foi o que pensamos que ele fazia.
Porque ele se limitava a dizer, não vendi nenhum, não vendi nenhum.
Por sinal, ninguém efetivamente jamais o viu vendendo um coco
sequer. As histórias que circulam, entre os banhistas e comerciantes
da praia, é que ele é doido e toda a vez em que alguém tentou
abordá-lo para compra recebeu um desaforo ou terminou enrolado em
alguma confusão por ele armada. Nós o recebemos divertidos, mas
naturalmente dissemos que já havíamos tomado nossa água de coco.
Ele resmungou algumas frases em seu dialeto inaudível e tomando
distância já nas areias da praia fez com o braço o gesto
característico de uma banana.
De outra
feita, procuramos obter informações a seu respeito. De onde vinha,
onde morava, se tinha mulher, filhos. Ninguém sabia. É doido,
diziam todos. Monocórdios. Hoje Sujinho voltava pela pista. A chuva
forte o impedira do trajeto habitual nas areias da praia. Um carro
desgovernado o apanhou, levantando-o no ar e destroçando sua
carrocinha, dentro da qual não havia nenhum coco. Comentam que há
muito era assim: ele conduzia a carroça, ida e volta, apenas para se
sentir fazendo alguma coisa. Num acostamento de estrada, Sujinho
sumiu. Tão rápido quanto um dia havia surgido.
quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012
CINEMA E LITERATURA: UMA SIMBIOSE SEMIÓTICA
Autor:
Francisco de Assis Rocha Filho
Disciplina:
Literatura, cinema e outras mídias
Professor:
Alexandre Figueroa
Introdução e justificativa
É simbiótica, antes de ser semiótica!, a relação que se
estabelece entre cinema e literatura, desde tempos muito antigos. Há
quem veja, por exemplo, na Ilíada de Homero, momentos
cinematográficos. Assim como Alberto da Costa e Silva viu Navio
Negreiro, de Castro Alves, do ponto de vista cinematográfico.
Embora filho legítimo do teatro, em “união estável” com a
fotografia (quando posta em movimento, principalmente), o cinema
herdou da literatura sua função narrativa e o roteiro – um dos
componentes essenciais da chamada sétima arte - é também uma peça
literária. Tanto assim que Buñuel, consagrado cineasta espanhol,
acredita “que nada es más importante em la fabricación de una
película que um buen guión”, razão por que em quase todas “mis
películas (menos cuatro) he necessitado um escritor, un guionista,
para ayudarme a poner no negro sobre blanco el argumento y los
diálogos” (BUÑUEL, Luis – DEBOLS!LLO, Barcelona: 2010, p. 286).
É natural então que obra literária e obra fílmica interajam uma
sobre a outra, estimulando o desenvolvimento harmonioso dessas duas
manifestações artísticas fundamentais em nosso universo cultural –
claro que isso se passa, sem prejuízo da independência necessária
à manifestação de cada uma como linguagem específica.
Transmutação nos parece a melhor
designação para o processo de transformação de uma obra literária
em obra fílmica, processo hoje generalizado na indústria
cinematográfica. Ela remete à tipologia formulada por Roman
Jakobson para as traduções em geral, conceituando a transposição
aqui estudada como “tradução inter-semiótica ou transmutação,
que consiste na interpretação dos signos verbais, por meio de
sistemas de signos não verbais” (JAKOBSON apud BALOGH, Annablume,
SP: 2004, p. 47). A respeito desse processo, Anna Maria Balogh
comenta que “o mesmo conteúdo, ou parte ponderável dele, transita
de um texto a outro... ...a íntima coesão entre este conteúdo, que
permite o trânsito intertextual, e uma expressão diversa, que o
atualiza, não pode senão relativizar os diferentes textos de algum
modo. Por este motivo, a maioria dos autores fala de recriação”
(Annablume, SP: 2004, p. 47).
O processo configurado acima não se
realiza a contento, senão pelo enfrentamento de várias
dificuldades. A primeira delas é que, tanto as obras literárias,
quanto as fílmicas, são obras de arte regidas pela função
poética, o que nos deixa às voltas com a ambiguidade e a
plurissignifcação conduzidas por tal função. Semelhante situação
levou muitos, o próprio Jakobson inclusive, à conclusão de que a
poesia é intraduzível, formulação que, no limite, desemboca num
verdadeiro beco sem saída, impossibilitando completamente a
realização da tradução interlingual (entre línguas diferentes),
bem como a tradução inter-semiótica (entre sistemas de signos
diferentes).
Encontrar alguma saída nesse beco vai
depender da habilidade, da sensibilidade, do domínio no manejo dos
instrumentos compatíveis, da competência, enfim, de quem se
arrisque a empreender tais traduções. É o que tentaremos ver se
conseguiu Leon Hirschman, cineasta brasileiro, que em 1972 tentou
operar uma de suas principais transmutações, baseando-a em São
Bernardo, romance de Graciliano Ramos, publicado em 1934.
SÃO BERNARDO, LIVRO: O NOVO NO ANTIGO!
Não houvessem nascido e escrito seus
livros em épocas absolutamente distintas poderíamos dizer que, na
elaboração de São Bernardo, Graciliano
seguiu o princípio orientador formulado por Júlio Cortázar,
consagrado escritor argentino, que em trechos de sua poética,
contidos em “O Jogo da Amarelinha”, recomenda: “O romance que
nos interessa não é o que vai instalando as personagens na situação
e sim o que instala a situação nas personagens”. A hipótese é
inverossímil – São Bernardo é da década de 30; O
Jogo... da de 60. Mas ao acabar a leitura dos dois primeiros
capítulos de Graciliano o que temos diante de nós é a pura
aplicação do princípio sacramentado por Cortázar. Como assinala
João Luiz Tafetá, em posfácio de uma das edições de São
Bernardo, “o leitor foi – de chofre – empurrado para dentro de
um mundo que desconhece. Não há, na entrada de São Bernardo, nem
uma palavra que sirva para localizá-lo, nenhum painel descritivo que
lhe permita conhecer de antemão o mundo que vai agora visitar. Foi
lançado diretamente na ação, no meio dos fatos” (Record, Rio de
Janeiro: 1996, p. 194). Diferentemente do costumeiro, na literatura
praticada em meados do século XIX e começos do século XX, as
personagens não são pré-concebidas. Elas vão se formando na ação.
E crescem, diminuem ou desaparecem, conforme se revelem mais ou menos
capazes de se locomover nas situações que sobre elas incidam.
É pela maestria com que domina o que
há de mais moderno em termos de técnica narrativa (os exercícios
de metalinguagem, a muda de narradores, ou das vozes que os
representam, a utilização do discurso indireto e/ou livre, o
esgrimir exuberante da dialética autor/narrador), que Graciliano
constrói São Bernardo, deixando aos epígonos da crítica
escolher onde melhor situá-lo. Se na esteira do que há de melhor no
romance social – como expressão sociológica da “formação de
um burguês”; se no ramal que o conduza pelas vertentes do romance
psicológico – como expressão da criação de um sentimento, o
ciúme, empreitada em que se equipara a um outro luminar da
literatura brasileira, Machado de Assis e seu Dom Casmurro. De
uma forma ou de outra, São Bernardo roça as fronteiras, a partir
das quais se configuram as obras-primas – no caso, depois de Vidas
Secas, a segunda do autor.
SÃO BERNARDO,
FILME: O ANTIGO NO NOVO!
Como
já se viu, na alusão inicial a Anna Maria Balogh e seu excelente
“Conjunções, Disjunções, Transmutações – Da Literatura ao
Cinema e à TV”, a passagem de um texto literário para um texto
fílmico pressupõe uma operação intertextual específica. Em outro
artigo, a mesma autora indica que “a arte cinematográfica se
constrói a partir da inter-relação de duas materialidades básicas,
a imagem – iluminação, cor, enquadramento, movimentos de câmera
e de personagens, entre outros – e o som – ruído, palavra,
música -, num intricado tecido de relações estruturadoras do filme
e de sua Graffia
– linguagem cinematográfica” (ARX, São Paulo: 2009. p. 28).
É
do domínio maior ou menor que possua, no manuseamento de cada um
desses componentes essenciais da arte cênica, e da conjugação que
deles possa fazer com os elementos essenciais que sobressaem da
narrativa literária, que o cineasta vai nos dizer se conseguiu achar
a saída, no beco em que se meteu ao se propor uma tradução
inter-semiótica. Leon Hirszman nos parece ter conseguido êxito
nessa façanha. Embora tenha optado pela transcrição integral –
nos diálogos e na narração feita também em 1ª pessoa - do texto
de São Bernardo, o que levou muitos a apontar certo empobrecimento
no produto transmutado, Hirszman o faz estabelecendo duas ordens de
manifestação discursiva: uma, verbal-literária, e outra,
imagética. O encontro dessas duas vertentes, que atravessa todo o
filme, atenua o que possa haver de negativo na primeira – graças à
qual é possível reconhecer o livro inteiro nas falas do filme -,
fazendo resplandecer a segunda -– expressão essencial da linguagem
para a qual se fez a transmutação. Um comentário de Geraldo Carlos
do Nascimento nos ajuda a compreender melhor o dito:
“No
filme, há poucos movimentos de câmera. Ela fica a maior parte do
tempo praticamente parada. Ao fazer isso, Hirszman ilustra a maneira
de pensar do protagonista e, também, remete ao modo de contar de
Graciliano, à sua propalada concisão, sua economia de linguagem. A
narrativa se repete, o autor cinematográfico retoma enquadramentos,
marcações. Por exemplo, na cena depois da primeira explosão
emocional de Paulo Honório com D. Glória, tia de Madalena: a
mulher, num gesto de boa vontade e compreensão leva café para o
marido no quarto e o casal se reconcilia. Isso não é dito, mas se
evidencia”
(ARX, São Paulo: 2009, p. 80).
O
mesmo autor aponta outras cenas (Paulo Honório e Madalena na Igreja,
depois que ele disse tudo que sentia, por conta de seu ciúme
doentio, e os dois se dirigem a um banco próximo para sentar e
conversar; ou na cena em que se faz a negociação das terras de São
Bernardo, quando a posição de subordinação de Padilha é dada
pela posição em que é metido, dentro de um fosso, no qual fica
nítida sua inferiorização) como reveladoras de que o sentido do
filme “se constrói não só no nível das peripécias narrativas,
mas também e principalmente no modo de expor e de contar, com a
utilização de diferentes recursos discursivos” (ARX, São Paulo:
2009, p. 81).
Além
disso, voltando ao que diz Anna Maria Balogh, na maioria das
transposições fílmicas, procura-se eliminar quaisquer elementos
problemáticos para a inteligibilidade da narrativa ou para a
passagem ao visual. É o que ocorre com as reflexões de Paulo
Honório sobre o próprio ato de escrever o romance, eliminadas em
“São Bernardo” - filme. Nada de metalinguagens, narrativa pura e
simples.
Foi
pela capacidade que teve de criar uma gramática e uma sintaxe
próprias, fazendo-as expressão de uma nova linguagem, ao aplicá-la
com habilidade sobre a tessitura de uma linguagem mais antiga, que
Hirszman conseguiu fazer com que seu filme escapasse de acusação
habitual em casos semelhantes: a de se tratar de uma “tradução
servil” ou meramente ilustrativa. Pela sensibilidade que revelou no
tratamento de cada um dos componentes essenciais das linguagens que
na transmutação se entrelaçam, ele conseguiu que seu filme
preservasse, em primeiro lugar, a sua autonomia fílmica. Ou seja: se
impusesse como filme, como obra própria do universo cinematográfico,
antes de ser avaliado ou visto como obra decorrente de qualquer outro
universo. A veracidade dessa constatação nos ficou meridianamente
clara, num rápido levantamento de opiniões, que fizemos entre as
pessoas que haviam apenas visto o filme, sem conhecimento da obra na
qual ele se baseara. Todas se disseram encantadas com o que haviam
visto. O que já é muito, por introduzir na análise crítica o que
parece fundamental hoje em sua elaboração – a opinião do
receptor, diante de qualquer obra de arte.
Referências Bibliográficas:
BALOGH,
Ana Maria – Conjunções/disjunções/transmutações – Da
literatura ao cinema e à TV – ANNABLUME –
São Paulo: 2004.
LAFETÁ,
João Luiz – O Mundo à Revelia – in: São Bernardo – Record,
Rio de Janeiro: 1996
NASCIMENTO,
Geraldo Carlos do. - São Bernardo Revisitado: a emergéncia do
narrador no Cinema – in: O feitiço do Cinema – Orgs:
Juan Guillermo Droguett e Flavio Andrade – ARX – São
Paulo: 2009
RAMOS,
Graciliano – São Bernardo – Record, Rio de Janeiro: 1996.
segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012
A MARCA
CHICO DE ASSIS
Ilustração Juliano Dornelles
Nada revela à superfície
a marca que revolteia
em tuas entranhas
embora ela te conduza
em passos incertos
sobre a relva
e vôos tateantes
pelo ar.
Vai! Aguça tua retina
sobre a imagem perfeita
do teu clone.
Procura Inútil.
Embora transpareça
em sinais psoríases
espalhados no teu corpo;
embora configure
a grandeza de gestos ancestrais
em cacoetes transformados;
ademais do movimento
retilíneo que executa
e para além do impulso
que te liberta e emociona,
a marca como sempre permanece
oclusa.
E esse diluir-se
em substâncias porosas
inatingíveis;
e esse aconchegar-se
ao âmago das coisas
ou em coisas do âmago;
esse estar e não estar
em infinita e torturante dialética,
te imobiliza e te impede o mergulho
ontológico
que querias praticar
no ato corriqueiro
de olhar-se nu
face ao espelho.
Ilustração Juliano Dornelles
Nada revela à superfície
a marca que revolteia
em tuas entranhas
embora ela te conduza
em passos incertos
sobre a relva
e vôos tateantes
pelo ar.
Vai! Aguça tua retina
sobre a imagem perfeita
do teu clone.
Procura Inútil.
Embora transpareça
em sinais psoríases
espalhados no teu corpo;
embora configure
a grandeza de gestos ancestrais
em cacoetes transformados;
ademais do movimento
retilíneo que executa
e para além do impulso
que te liberta e emociona,
a marca como sempre permanece
oclusa.
E esse diluir-se
em substâncias porosas
inatingíveis;
e esse aconchegar-se
ao âmago das coisas
ou em coisas do âmago;
esse estar e não estar
em infinita e torturante dialética,
te imobiliza e te impede o mergulho
ontológico
que querias praticar
no ato corriqueiro
de olhar-se nu
face ao espelho.
domingo, 12 de fevereiro de 2012
ENTRE A CRUZ E A ESPADA
CHICO DE ASSIS
Menino
de colégio
público menino
de
feira
periférico
num
mundo distante
solidão sufocante
saindo nos poros
tristeza
baixando a cabeça
inerte na escada
levanta surpresa
nas
pernas bem-feitas
sinuosas burguesas
passando e morrendo
na
pressa frenética
entre dedos e mãos.
Menino
atrevido
se
encosta enxerido
nas
brumas de amor
recolhido
nos postes
nos
postos
nos
pontos centrífugos
da
grande cidade
amor
sem idade
esgueirando-se
no cio
das
meninas mocinhas
das
velhas caseiras
sem
dó carpideiras
da
dor do horror
do
horror solitário
penando
entre margens
drenando
viagens
etéreas
paisagens
sem
cor sem odor
apenas
miragens.
Menino
espremido
entre
Deus e o Diabo.
quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012
REALIDADE E FICÇÃO NUM SÓ TEMPO POÉTICO
ROSSELINI AMOU A PENSÃO DE DONA BOMBOM, DE CÍCERO BELMAR
Autor: Francisco de Assis Rocha Filho
Disciplina: Leitura dirigida
Professores: Dr. Janilto Andrade e Dra. Renata Pimentel
Introdução
Nas três e meia primeiras linhas do livro, Belmar nos avisa a que veio e descortina o universo de fantasia em que estaremos entrando, caso continuemos a leitura. Bom. Já não é bem Belmar. Também ainda não se trata daquele que vai contar a história de Dona Bombom, com suas meninas e seus exóticos frequentadores. A instância que nos aparece aqui – e que de chofre nos conduz para uma região onde se está desenrolando uma outra história ou, como quer Autran Dourado, “uma história subliminar e simbólica que subsiste debaixo das minhas histórias” - é a instância exercida pelo que a teoria chama de “autor implícito”. Para além da máscara a que todo criador recorre para contar a história – o narrador -, no espaço entre este e o autor, como assinala Maria Lucia Dal Farra, localiza-se um ser que atravessa toda a narrativa e que se trai, no interior dela, na eleição deste ou daquele signo, na preferência por determinado narrador, na opção favorável por esta ou aquela personagem, na distribuição das matérias e dos capítulos, na própria pontuação escolhida.
Jornalista no batente de várias mídias – a impressa principalmente -, premiado diversas vezes pelo que produziu nelas, seria natural que Belmar recorresse à técnica em que se consagrou, para plasmar as feições desse ser, considerado hoje tão indispensável à boa execução da construção literária, quanto o autor e o narrador. É através dessa técnica que Belmar se apresenta, ou apresenta o seu “eu implícito”, deslocando-nos do espaço-tempo reais, onde começamos a leitura, ao espaço tempo ficcionais, onde se movem as perguntas (o que é verdade, o que é mentira?) e nos situamos no território onde tudo é simulacro, o tempo mais que tudo, o tempo ficcional mais que todos os tempos. No sutiã com que apresenta o primeiro bloco do romance nascente – técnica que se irá repetir a cada bloco ou capítulo – uma outra história estará sendo contada, subjacente à história principal, descortinando-lhe os horizontes, antecipando-a em pormenores essenciais e mantendo-a nos limites possíveis da verossimilhança, ideal maior, desde Aristóteles, de todos aqueles que se arriscam em qualquer seara artística.
Quando a palavra é passada à onisciência de um narrador, fixado em 3ª pessoa, já o cenário estará criado para que se respire a atmosfera do mundo de Dona Bombom, ainda apenas Dona Arcângela, dona de um puteiro, porta de entrada para a maravilhosa viagem de volta ao Recife dos anos 50, seus cabarés e suas putas, seus boêmios e seus intelectuais, circunscrevendo a nostalgia de um tempo que decididamente não volta mais.
AÇÃO!
Prefaciando “Umbilina e sua grande rival” - o primeiro romance premiado de Belmar -, Raimundo Carrero destaca duas características que seriam os vetores da força narrativa contida no romance prefaciado: agilidade e simplicidade. No mesmo texto, Carrero assinala que Belmar conhece os “segredos da montagem dos personagens e movimentação nas cenas, algo não muito comum entre os escritores”. Se ali o crítico configura tais qualidades ainda em estágio embrionário, em “Rosselini amou a pensão de Dona Bombom” elas vão transparecer de forma avassaladora no ritmo frenético que se imprime particularmente à narração dos seus três primeiros capítulos. A partir deles, já estaremos situados: nos contornos da cidade que irá servir de cenário ao transcurso da narrativa e nas características essenciais das personagens que nela se irão envolver ou terão papel significativo na sua realização (D. Edilza, a tapioqueira, que anuncia a vinda do cineasta italiano ao Recife ou D. Salete, a cartomante, que confirma a informação da tapioqueira, introduzindo no espírito da nossa protagonista a curiosidade necessária para o desenrolar das várias ações posteriormente narradas, ou ainda Julieta, a cozinheira, cuja procura é a razão das ações nesses capítulos iniciais e se transforma em suporte fundamental das atividades exercidas por D. Bombom). Exibir tais qualidades – agilidade, simplicidade, montagem de cenários e personagens - na composição narrativa é empresa só aparentemente fácil. Na verdade, como diz o mesmo Carrero, ela exige “perícia e paciência” e remete à assertiva lapidar de Júlio Cortázar: “O romance que nos interessa não é o que vai introduzindo as personagens na situação e sim o que introduz a situação nas personagens”. No nosso entender, é isso que ocorre com as personagens desse “Rosselini amou a pensão de D. Bombom”. Elas não foram pré-concebidas. Elas se forjam na ação e crescem, diminuem ou desaparecem, conforme se revelem mais ou menos capazes de se locomover nas situações que sobre elas incidam.
MANUSEIO DAS TÉCNICAS E DOS PLANOS LITERÁRIOS
Configurado o cenário onde as ações se desenrolam, entrelaçadas com ele, na forma dinâmica já enunciada, as personagens que as empreenderão, acrescidas das que forem surgindo em decorrência do entrecho dramático já esboçado, faltaria o quê, para que a narrativa viesse a ter o êxito que obteve? Para responder positivamente a essa demanda, Belmar transita do exímio manuseio da técnica jornalística, para o mesmo patamar no manejo das mais modernas técnicas literárias. Particularmente a partir do 4º capítulo, o romance passa a ser narrado em várias vozes, que se revezam às vezes de forma expressa (assinalada por aspas que antecedem e fecham a fala), outras vezes de forma tão sutil, que o leitor mal nota as mudanças de perspectiva e tem a impressão de que o narrador é um só. É na habilidade exuberante com que comanda esse processo de muda entre os enunciadores do discurso narrativo, que Belmar consegue manter fixo o interesse do leitor, fazendo-o acompanhar as diversas peripécias através da quais se entrecruzam personagens reais (citados pelo próprio nome), com personagens imaginários, articulando-os num sistema harmônico que só a boa literatura consegue produzir.
A meticulosidade e competência na construção de cada um desses planos narrativos, o absoluto domínio de linguagem necessário a sua revelação, conduzem-nos, como que encantados, ao antológico capítulo final do romance, verdadeiro Baile Fiscal (se nos permitem o paralelo histórico) das putas e dos frequentadores de puteiros recifenses. Além da exuberância narrativa ai verificada, encerrando o romance com a exibição apoteótica dos nossos blocos carnavalescos, expressão mais autêntica das nossas raízes culturais, Belmar pontua, como última sentença do último dos sutiãs, através dos quais insinuou outra história nas entrelinhas da história principal: “O tempo poético é real e subjetivo”.
CONCLUSÃO
Terminada a leitura, não há como evitar a formulação da pergunta: será tudo verdade, ou de uma ponta de verdade se construiu um reino de mentiras? Vargas Llosa – escritor peruano e Nobel de Literatura 2011 – talvez nos ajude a responder: “nos acréscimos sutis ou grosseiros à vida, nos quais o romancista materializa suas obsessões secretas, reside a originalidade de uma ficção. Quanto mais expressar uma necessidade geral, mais profunda a ficção será, e também quanto mais numerosos forem, ao longo do espaço e do tempo, os leitores que identifiquem, nesses contrabandos filtrados da vida, os demônios que os inquietam”. Nesse sentido, podemos dizer que Belmar obteve pleno êxito: deixou inquietos todos os nossos demônios. Podemos dizer mais ainda: o romance em foco é a conjugação quase perfeita da técnica jornalística – em seu grau máximo de apuração – com a técnica literária – em seu grau máximo de depuração. Manuseando com primor essas duas técnicas, Belmar legou à posteridade “uma esforçada operação intelectual, o trabalho de uma linguagem e a invenção de uma ordem narrativa, de uma organização do tempo, de determinados movimentos, de determinada informação e de determinados silêncios”, tudo enfim de que depende, na expressão do mesmo Vargas Llosa, “um romance bem-sucedido”. Como só pode ser classificado esse fantástico “Rosselini amou a pensão de Dona Bombom”.
Referências Bibliográficas:
BELMAR, Cícero: Rosselini amou a pensão de Dona Bombom - Fundação de Cultura da Cidade do Recife, Recife: 2007
BELMAR, Cícero: Umbilina e sua grande rival – Fundação de Cultura do Recife, Recife, 2002.
CARRERO, Raimundo: in Umbilina e sua grande rival – Fundação de Cultura do Recife, Recife, 2002.
CORTÁZAR, Júlio: O Jogo da Amarelinha, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1994.
DOURADO, Autran: Uma poética de romance – Rocco, Rio de Janeiro, 2000
LLOSA, Vargas: A Verdade das mentiras – ARX, São Paulo, 2004
quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012
O FETO DO TÉDIO
CHICO DE ASSIS
Ilustração Juliano Dornelles
Há dias e dores.
Ilustração Juliano Dornelles
Ilustração Juliano Dornelles
Há dias e dores.
E dias maiores
que todas as dores
por ser só uma dor.
Em vão miramos no espelho
a cara o cabelo
e a transmutação.
Em vão buscamos o sol
a faculdade de suar
e o frio.
Em vão metemos no peito
as mãos sob a roupa
e o desejo.
Em vão partimos raízes
riscando deslizes
e o chão.
Ilustração Juliano Dornelles
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