Autor:
Francisco de Assis Rocha Filho
Disciplina:
Literatura, cinema e outras mídias
Professor:
Alexandre Figueroa
Introdução e justificativa
É simbiótica, antes de ser semiótica!, a relação que se
estabelece entre cinema e literatura, desde tempos muito antigos. Há
quem veja, por exemplo, na Ilíada de Homero, momentos
cinematográficos. Assim como Alberto da Costa e Silva viu Navio
Negreiro, de Castro Alves, do ponto de vista cinematográfico.
Embora filho legítimo do teatro, em “união estável” com a
fotografia (quando posta em movimento, principalmente), o cinema
herdou da literatura sua função narrativa e o roteiro – um dos
componentes essenciais da chamada sétima arte - é também uma peça
literária. Tanto assim que Buñuel, consagrado cineasta espanhol,
acredita “que nada es más importante em la fabricación de una
película que um buen guión”, razão por que em quase todas “mis
películas (menos cuatro) he necessitado um escritor, un guionista,
para ayudarme a poner no negro sobre blanco el argumento y los
diálogos” (BUÑUEL, Luis – DEBOLS!LLO, Barcelona: 2010, p. 286).
É natural então que obra literária e obra fílmica interajam uma
sobre a outra, estimulando o desenvolvimento harmonioso dessas duas
manifestações artísticas fundamentais em nosso universo cultural –
claro que isso se passa, sem prejuízo da independência necessária
à manifestação de cada uma como linguagem específica.
Transmutação nos parece a melhor
designação para o processo de transformação de uma obra literária
em obra fílmica, processo hoje generalizado na indústria
cinematográfica. Ela remete à tipologia formulada por Roman
Jakobson para as traduções em geral, conceituando a transposição
aqui estudada como “tradução inter-semiótica ou transmutação,
que consiste na interpretação dos signos verbais, por meio de
sistemas de signos não verbais” (JAKOBSON apud BALOGH, Annablume,
SP: 2004, p. 47). A respeito desse processo, Anna Maria Balogh
comenta que “o mesmo conteúdo, ou parte ponderável dele, transita
de um texto a outro... ...a íntima coesão entre este conteúdo, que
permite o trânsito intertextual, e uma expressão diversa, que o
atualiza, não pode senão relativizar os diferentes textos de algum
modo. Por este motivo, a maioria dos autores fala de recriação”
(Annablume, SP: 2004, p. 47).
O processo configurado acima não se
realiza a contento, senão pelo enfrentamento de várias
dificuldades. A primeira delas é que, tanto as obras literárias,
quanto as fílmicas, são obras de arte regidas pela função
poética, o que nos deixa às voltas com a ambiguidade e a
plurissignifcação conduzidas por tal função. Semelhante situação
levou muitos, o próprio Jakobson inclusive, à conclusão de que a
poesia é intraduzível, formulação que, no limite, desemboca num
verdadeiro beco sem saída, impossibilitando completamente a
realização da tradução interlingual (entre línguas diferentes),
bem como a tradução inter-semiótica (entre sistemas de signos
diferentes).
Encontrar alguma saída nesse beco vai
depender da habilidade, da sensibilidade, do domínio no manejo dos
instrumentos compatíveis, da competência, enfim, de quem se
arrisque a empreender tais traduções. É o que tentaremos ver se
conseguiu Leon Hirschman, cineasta brasileiro, que em 1972 tentou
operar uma de suas principais transmutações, baseando-a em São
Bernardo, romance de Graciliano Ramos, publicado em 1934.
SÃO BERNARDO, LIVRO: O NOVO NO ANTIGO!
Não houvessem nascido e escrito seus
livros em épocas absolutamente distintas poderíamos dizer que, na
elaboração de São Bernardo, Graciliano
seguiu o princípio orientador formulado por Júlio Cortázar,
consagrado escritor argentino, que em trechos de sua poética,
contidos em “O Jogo da Amarelinha”, recomenda: “O romance que
nos interessa não é o que vai instalando as personagens na situação
e sim o que instala a situação nas personagens”. A hipótese é
inverossímil – São Bernardo é da década de 30; O
Jogo... da de 60. Mas ao acabar a leitura dos dois primeiros
capítulos de Graciliano o que temos diante de nós é a pura
aplicação do princípio sacramentado por Cortázar. Como assinala
João Luiz Tafetá, em posfácio de uma das edições de São
Bernardo, “o leitor foi – de chofre – empurrado para dentro de
um mundo que desconhece. Não há, na entrada de São Bernardo, nem
uma palavra que sirva para localizá-lo, nenhum painel descritivo que
lhe permita conhecer de antemão o mundo que vai agora visitar. Foi
lançado diretamente na ação, no meio dos fatos” (Record, Rio de
Janeiro: 1996, p. 194). Diferentemente do costumeiro, na literatura
praticada em meados do século XIX e começos do século XX, as
personagens não são pré-concebidas. Elas vão se formando na ação.
E crescem, diminuem ou desaparecem, conforme se revelem mais ou menos
capazes de se locomover nas situações que sobre elas incidam.
É pela maestria com que domina o que
há de mais moderno em termos de técnica narrativa (os exercícios
de metalinguagem, a muda de narradores, ou das vozes que os
representam, a utilização do discurso indireto e/ou livre, o
esgrimir exuberante da dialética autor/narrador), que Graciliano
constrói São Bernardo, deixando aos epígonos da crítica
escolher onde melhor situá-lo. Se na esteira do que há de melhor no
romance social – como expressão sociológica da “formação de
um burguês”; se no ramal que o conduza pelas vertentes do romance
psicológico – como expressão da criação de um sentimento, o
ciúme, empreitada em que se equipara a um outro luminar da
literatura brasileira, Machado de Assis e seu Dom Casmurro. De
uma forma ou de outra, São Bernardo roça as fronteiras, a partir
das quais se configuram as obras-primas – no caso, depois de Vidas
Secas, a segunda do autor.
SÃO BERNARDO,
FILME: O ANTIGO NO NOVO!
Como
já se viu, na alusão inicial a Anna Maria Balogh e seu excelente
“Conjunções, Disjunções, Transmutações – Da Literatura ao
Cinema e à TV”, a passagem de um texto literário para um texto
fílmico pressupõe uma operação intertextual específica. Em outro
artigo, a mesma autora indica que “a arte cinematográfica se
constrói a partir da inter-relação de duas materialidades básicas,
a imagem – iluminação, cor, enquadramento, movimentos de câmera
e de personagens, entre outros – e o som – ruído, palavra,
música -, num intricado tecido de relações estruturadoras do filme
e de sua Graffia
– linguagem cinematográfica” (ARX, São Paulo: 2009. p. 28).
É
do domínio maior ou menor que possua, no manuseamento de cada um
desses componentes essenciais da arte cênica, e da conjugação que
deles possa fazer com os elementos essenciais que sobressaem da
narrativa literária, que o cineasta vai nos dizer se conseguiu achar
a saída, no beco em que se meteu ao se propor uma tradução
inter-semiótica. Leon Hirszman nos parece ter conseguido êxito
nessa façanha. Embora tenha optado pela transcrição integral –
nos diálogos e na narração feita também em 1ª pessoa - do texto
de São Bernardo, o que levou muitos a apontar certo empobrecimento
no produto transmutado, Hirszman o faz estabelecendo duas ordens de
manifestação discursiva: uma, verbal-literária, e outra,
imagética. O encontro dessas duas vertentes, que atravessa todo o
filme, atenua o que possa haver de negativo na primeira – graças à
qual é possível reconhecer o livro inteiro nas falas do filme -,
fazendo resplandecer a segunda -– expressão essencial da linguagem
para a qual se fez a transmutação. Um comentário de Geraldo Carlos
do Nascimento nos ajuda a compreender melhor o dito:
“No
filme, há poucos movimentos de câmera. Ela fica a maior parte do
tempo praticamente parada. Ao fazer isso, Hirszman ilustra a maneira
de pensar do protagonista e, também, remete ao modo de contar de
Graciliano, à sua propalada concisão, sua economia de linguagem. A
narrativa se repete, o autor cinematográfico retoma enquadramentos,
marcações. Por exemplo, na cena depois da primeira explosão
emocional de Paulo Honório com D. Glória, tia de Madalena: a
mulher, num gesto de boa vontade e compreensão leva café para o
marido no quarto e o casal se reconcilia. Isso não é dito, mas se
evidencia”
(ARX, São Paulo: 2009, p. 80).
O
mesmo autor aponta outras cenas (Paulo Honório e Madalena na Igreja,
depois que ele disse tudo que sentia, por conta de seu ciúme
doentio, e os dois se dirigem a um banco próximo para sentar e
conversar; ou na cena em que se faz a negociação das terras de São
Bernardo, quando a posição de subordinação de Padilha é dada
pela posição em que é metido, dentro de um fosso, no qual fica
nítida sua inferiorização) como reveladoras de que o sentido do
filme “se constrói não só no nível das peripécias narrativas,
mas também e principalmente no modo de expor e de contar, com a
utilização de diferentes recursos discursivos” (ARX, São Paulo:
2009, p. 81).
Além
disso, voltando ao que diz Anna Maria Balogh, na maioria das
transposições fílmicas, procura-se eliminar quaisquer elementos
problemáticos para a inteligibilidade da narrativa ou para a
passagem ao visual. É o que ocorre com as reflexões de Paulo
Honório sobre o próprio ato de escrever o romance, eliminadas em
“São Bernardo” - filme. Nada de metalinguagens, narrativa pura e
simples.
Foi
pela capacidade que teve de criar uma gramática e uma sintaxe
próprias, fazendo-as expressão de uma nova linguagem, ao aplicá-la
com habilidade sobre a tessitura de uma linguagem mais antiga, que
Hirszman conseguiu fazer com que seu filme escapasse de acusação
habitual em casos semelhantes: a de se tratar de uma “tradução
servil” ou meramente ilustrativa. Pela sensibilidade que revelou no
tratamento de cada um dos componentes essenciais das linguagens que
na transmutação se entrelaçam, ele conseguiu que seu filme
preservasse, em primeiro lugar, a sua autonomia fílmica. Ou seja: se
impusesse como filme, como obra própria do universo cinematográfico,
antes de ser avaliado ou visto como obra decorrente de qualquer outro
universo. A veracidade dessa constatação nos ficou meridianamente
clara, num rápido levantamento de opiniões, que fizemos entre as
pessoas que haviam apenas visto o filme, sem conhecimento da obra na
qual ele se baseara. Todas se disseram encantadas com o que haviam
visto. O que já é muito, por introduzir na análise crítica o que
parece fundamental hoje em sua elaboração – a opinião do
receptor, diante de qualquer obra de arte.
Referências Bibliográficas:
BALOGH,
Ana Maria – Conjunções/disjunções/transmutações – Da
literatura ao cinema e à TV – ANNABLUME –
São Paulo: 2004.
LAFETÁ,
João Luiz – O Mundo à Revelia – in: São Bernardo – Record,
Rio de Janeiro: 1996
NASCIMENTO,
Geraldo Carlos do. - São Bernardo Revisitado: a emergéncia do
narrador no Cinema – in: O feitiço do Cinema – Orgs:
Juan Guillermo Droguett e Flavio Andrade – ARX – São
Paulo: 2009
RAMOS,
Graciliano – São Bernardo – Record, Rio de Janeiro: 1996.
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