Proponente: Francisco de Assis Rocha Filho
Disciplina: Literatura Brasileira I
Professor: Dr. Janilto Andrade
Introdução
O texto que nos remete a'O Ateneu de Raul Pompéia, e que foi objeto de avaliação em aula, é um texto de Rodrigo Gurgel, que nos parece marcado pelo ranço preconceituoso dos que não sabem distinguir entre a crítica literária – que deve estar isenta de qualquer propósito destrutivo – e a crítica feita para obter alguma projeção, seja de qual ordem for. Porque não se concebe que no romance em foco – considerado obra-prima por diversos expoentes da nossa literatura – o articulista do jornal paranaense (“Rascunho”) não tenha encontrado nada que merecesse o reconhecimento dos que acompanham e participam da cena literária, senão o seu parágrafo inicial (“Vais encontrar o mundo. Coragem para a luta”). A partir daí, segundo ele, tudo não passará de “relíquias” que “enxovalham a obra do começo ao fim, construindo um universo de preciosismo que, para ser compreendido, exige dicionários e enciclopédias” ( RASCUNHO, junho de 2010).
Todas as tentativas de análises psicológicas das personagens – que traçam perfis riquíssimos nessa área, talvez só inferiores aos traçados por Machado de Assis – são transformadas em artimanhas de “um narrador sui generis, hábil em depreciar, mestre da chacota, que possui, entretanto, autocomplacência evangélica” (idem, ibidem). De resto, acusa o autor (ou o narrador, que ele não distingue um do outro) de dissimulado, narcisista e de se embrenhar na retórica como “refúgio do pernóstico, o instrumento por meio do qual ele camufla seus reais interesses, inclusive os sexuais” (idem, ibidem). Termina por condenar o livro todo como sendo “uma ofensiva gargalhada, a um passo da histeria”.
Não nos compete aqui investigar as razões pelas quais o crítico enveredou pelo caminho mais fácil da fraseologia leviana. O que se percebe é que não há no texto qualquer esforço para fundamentar qualquer uma das suas análises em qualquer tópico mais consistente da teoria literária. E acusando Raul de “Enfermo de Retórica” - expressão com a qual intitula seu artigo -, parece se enredar numa enfermidade maior: a do superficialismo crônico, que disfarça na agressividade sua incapacidade de formular proposições com um mínimo de consistência. Vamos por isso deixá-lo de lado, a mastigar seu provincianismo raivoso, enquanto enveredamos nas trilhas abertas pela extensa fortuna crítica, já consolidada em torno do romance.
DEVASSANDO “O ATENEU”
É Mário de Andrade quem nos situa de forma mais direta na temática do romance, ao lado da possível intenção do autor ao escrevê-lo. Diz o escritor emblemático da Semana de Arte Moderna no Brasil: “Não é possível negar, as provas são fortes, que neste livro de ficção o escritor vazou a sua vingança contra o seu internamento no colégio Abilio. O Ateneu é uma caricatura sarcástica e, relativamente a Raul Pompéia, dolorosissima, da vida psicológica dos internatos” (Livraria Martins Editora, São Paulo: 6ª edição, p. 173). “Abilio” era o nome do colégio carioca, onde o autor esteve de fato internado. Seu diretor, de nome homólogo ao do colégio e mais conhecido como o barão de Macaúbas, seria a origem do diretor do Ateneu, Aristarco, embora a opinião geral seja de que os dois guardem pouquíssimas semelhanças. Mesmo admitindo tenha sido outra a intenção do romancista, para o autor de Macunaima “quem quer que leia com maior intimidade O Ateneu, percebe logo que o romancista se vinga. Atira-se com um verdadeiro furor destrutivo contra tudo e todos do colégio... …Raul Pompéia se vinga. Se vinga do colégio com uma generalização tão abusiva e sentimental que chega à ingenuidade (idem, ibidem, p. 173)”.
Apesar do aparente caráter depreciativo contido na formulação, o próprio Mário realça que isso em nada reduz a grandeza social e literária da obra. Cita, por exemplo, as configurações de Aristarco, para sublinhar momentos em que “Raul Pompéia atinge as raias da genialidade. Não há nenhuma página sobre Aristarco que não seja magistral. A violência é prodigiosa, as imagens saltam inesperadas, de um vigor de realismo e de uma beleza de imaginação absolutamente excepcionais... ...Este será sempre um dos maiores méritos de Pompéia e sua invenção genial. Aristarco ficará como tipo heróico e sarcástico do diretor de colégio de uma unidade e poder de convicção como não conheço outro congênere na literatura universal” (Martins Editora, SP, 6ª ed., p. 180)
Já Lúcia Miguel Pereira descarta de saída a importância atual da discussão sobre as origens reais do Ateneu-Colégio, ou mesmo sobre os sentimentos que haveriam motivado o autor na construção de O Ateneu-Romance. Embora reconheça que no momento de publicação há de ter sido de grande interesse descobrir os traços de semelhança entre o Ateneu e o seu suposto modelo, “hoje já não importam tais indagações. Não sofrendo dos defeitos tão comuns nas obras intencionais, o livro como que se desprendeu completamente das circunstâncias de que se originou” (Itatiaia, Belo Horizonte; Editora da Universidade de São Paulo, SP, 1988, p. 108). A respeito de saber até que ponto no narrador (Sérgio) se encarnara o autor, ou se o drama de Sérgio seria o mesmo de Pompéia, Lúcia diz parecer provável que o seja, admitindo estivesse ali “a chave do destino trágico do escritor, da solidão que o levou ao suicídio, prisioneiro da própria hipersensibilidade” (1998, p. 108). Acentua, contudo, que a personificação melhor daquele drama está principalmente “na dor dos primeiros contatos com a vida, o choque de quem se vê de repente num ambiente desconhecido e o percebe hostil. Para exprimir esse sofrimento, Pompeia escolheu uma criança e um colégio, como poderia ter escolhido um recruta e uma caserna, uma mulher e a nova família onde entra pelo casamento” (idem, ibidem, p. 108).
QUANDO O “MUNDO” SE TORNA “INFERNO”
Enfocando o estudo que fez, por ângulo diferente ao dos autores até aqui citados, Massaud Moisés sugere um diálogo d'O Ateneu com A Divina Comédia, de Dante. Segundo ele, a estrutura do livro é similar ao Inferno dantesco, (configuração que inclusive nos inspirou o título deste trabalho), correspondendo cada capítulo, episódio ou peripécia a um dos círculos infernais. Destaca então a fala inicial do pai de Sérgio – “Vais encontrar o mundo. Prepara-te para a luta”, cuja força de abertura é indiscutível e aceita como um feliz achado por todos -, entendendo-a “uma réplica cruel, na sua aparente sabedoria e desprendimento, do verso com que Dante desengana os que se destinam aos abismos de Satã: “Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate”. Bem podia o pai de Sérgio dizer-lhe que perdesse a esperança, pois adentrava o Inferno” (Cultrix, Editora da Universidade de São Paulo, l985, p. 122). Mantendo o cenário dantesco, Massaud afirma que os “doze capítulos d'O Ateneu parecem reproduzir os nove círculos infernais: os luxuriosos, os gulosos, os avaros, os pródigos, os iracundos, os agressivos, os enganadores ali se encontram” (idem, ibidem,p. 123).
Depois de longa digressão para demonstrar a adequação do paralelo estabelecido (sem dispensar uma competente incursão no terreno que Freud e a Psicanálise iriam explorar vastamente logo depois: “o Narrador mergulha no tempo à procura de sua e alheia infância, matriz das neuroses vindouras, e volta com um relato corrosivo, impiedoso mas verídico. Ao contrário de paraiso perdido, a infância é o Inferno: entra-se pela vida pagando os pecados presentes e futuros...” - 1985, p. 125 ), Massaud conclui lapidarmente:
“O Ateneu é uma narrativa de arte, a fábula do menino que se perdeu nos caldeirões infernais (simplesmente por ter vindo à vida e ingressado na escola) e que se lembra, em meio à interminável agonia, da salvação que a arte pode representar” (1985, p. 131).
UMA ESPERANÇA NATIMORTA
Além da arte, acrescentaríamos por nossa conta, o romance sugere que a salvação possa estar no amor. Que irrompe devastador n'O Ateneu, quando Sérgio baixa enfermaria e Ema, esposa de Aristarco, o acompanha veladamente, em todo o periodo de doença e convalescença. A paixão platônica (edipiana?), que atravessa todo o livro desde o primeiro encontro entre os dois, imprime-se então sem meias tintas, em páginas inesquecíveis e inapagáveis, retratos do belo, que o verdadeiro amor sabe produzir e que só a sensibilidade do verdadeiro artista sabe captar:
“Junto da cama, um velador modesto e uma cadeira. Ema sentava-se. Pousava os cotovelos à beira do colchão, o olhar nos meus olhos – aquele olhar inolvidável, negro, profundo como um abismo, bordado pelas seduções todas da vertigem. Eu não podia resistir, fechava as pálpebras; sentia ainda na pálpebra com o hálito de veludo a carícia daquela atenção” (2009, p. 163).
E em continuidade:
“Aristarco surgia às vezes solenemente, sem demorar. Ângela nunca. Fora-lhe proibida a entrada. (Ângela, grifo nosso, era expressão da luxúria que adornou os passos de todos os alunos durante todo o tempo de internato. A proibição de sua entrada no quarto do enfermo sugere o sentimento que Ema já nutriria por ele e os ciúmes que lhe provocariam a presença da “rival” no quarto). Junto da cama, D. Ema comovia-se... ...Tirava-me a mão, prendia nas dela, tempo esquecido; luzia-lhe no olhar um brilho de pranto” (2009, p. 164)
Ou ainda mais:
“Fez-se-me desesperada necessidade a companhia da boa senhora. Não! Eu não amara nunca assim a minha mãe. Ela andava agora em viagem por países remotos, como se não vivesse mais para mim. Eu não sentia a falta. Não pensava nela... Escureceu-me as recordações aquele olhar negro, belo, poderoso, como se perdem as linhas, as formas, os perfis, as tintas, de noite, no aniquilamento uniforme da sombra” (2009, p. 165).
Para concluir:
“A convivência cotidiana na solidão do aposento estabelecera a entranhada familiaridade dos casais. Ema afetava não ter mais para mim avarezas de colchete. “Sérgio, meu filhinho”. Dava-me os bons dias... ...Debruçava-se expansiva, resplendendo a formosura sobre mim, na gola do penhoar, como um derramamento de flores de uma cornucópia... ...olhava-me de perto, bem dentro dos olhos, num encontro inebriante de olhares. Aproximava o rosto e contava, lábios sobre lábios, mimosas historietas sem texto, em que falava mais a vivacidade sanguínea da boca, do que a imperceptivel confusão de arrulhos cantando-lhe na garganta como um colar sonoro” (2009, 167).
Se o romance terminasse aqui, seria um hino de esperança e confiança no futuro, espécie de prêmio por todas as desventuras e amarguras vividas num meio, onde Sérgio encontrara predominantemente a maldade do homem, ou aquilo que a espécie humana carrega de inclinação irrefreável para o mal. Mas se o romance terminasse aqui, não seria um romance de Raul Pompéia, um ser corroído pela angústia do desespero no enfrentamento do dia a dia, contingência que o levou ao suicídio, sete anos depois da publicação d'O Ateneu.
Um ser descrente, absolutamente cético de tudo, teria que encaminhar seu narrador – ou, se quiserem, ser conduzido por ele, pois ninguém descobriu até hoje quem domina quem na elaboração de uma obra ficcional – a um desfecho mais consentâneo com o pessimismo crônico, entranhado na concepção de mundo que Pompéia esposou e alardeou no transcorrer de sua curta existência. Embora enlevado, vivendo o ápice de um momento raro de felicidade, naquele meio que sempre lhe fora hostil, Sérgio tinha surtos premonitórios do que poderia vir: “Apavorava-me um susto, alarma eterno dos felizes, azedume insanável dos melhores dias: não fosse subitamente destruir-se a situação” (2009, p. 165). E tão subitamente quanto fora construída, a situação desmoronou. Qual vaga-lume, a esperança embutida no amor finalmente descoberto luziu no quarto escuro e no momento seguinte apagou. Só que para sempre:
“E tudo acabou com um fim brusco de mau romance... Um grito súbito fez-me estremecer no leito: Fogo! Fogo! Abri violentamente a janela. O Ateneu ardia.” (2009, 168).
CONCLUSÃO
Deixamos de lado, propositadamente, a polêmica sobre em qual das mais conhecidas escolas literárias poderíamos enquadrar O Ateneu. São diversas as classificações feitas, como diferente também a autoridade de quem as faz. Começa por Mário de Andrade, ícone da Semana de Arte Moderna e escritor de rara envergadura na literatura nacional, que o coloca como naturalista. Segue-se Lúcia Miguel Pereira, de estatura similar na crítica, que o situa como realista, próximo inclusive do realismo psicológico exercitado por Machado de Assis. No meio dessas duas definições, encontra-se a de se tratar de obra vinculada ao impressionismo – que não forma propriamente uma escola literária, sendo antes um aspecto estilístico da linguagem – feita por críticos da estirpe de um Otto Maria Carpeaux, Afrânio Coutinho, Assis Brasil, entre outros.
Preferimos, assim, não nos alongar no assunto. Naturalista, realista, impressionista, já não é importante saber em qual desses cânones caberiam O Ateneu e seu autor. Até porque, todos quantos se revelaram divergentes na classificação, convergem unanimemente para aceitar a definição sumária de Massaud Moisés: “O Ateneu é a obra, retrato acabado e exclusivo de uma vida e de uma concepção de arte: obra-prima” (1985, p. 133). E é compatível com essa definição o final antológico que Raul Pompéia eternizou no romance:
“Aqui suspendo a crônica das saudades. Saudades verdadeiramente? Puras recordações, saudades talvez, se ponderarmos que o tempo é a ocasião passageira dos fatos, mas sobretudo – o funeral para sempre das horas” (2009, p. 172 – grifo nosso).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Mário de. - Aspectos da Literatura Brasileira – Martins Editora S. A. São Paulo: 6ª edição.
GURGEL, Rodrigo – Enfermo de retórica – Artigo publicado no jornal Rascunho, Curitiba, junho de 2010.
MASSAUD, Moisés – História da Literatura Brasileira (REALISMO) – Vol. III –2ª edição - Cultrix, São Paulo: 1985.
PEREIRA, Lúcia Miguel – Prosa de Ficção (de 1870 a 1920) – Itatiaia, Belo Horizonte; Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo: 1988.
POMPÉIA, Raul – O Ateneu – 1ª edição - Editora Saraiva, São Paulo: 2009.
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