JAZIGOS DA MEMÓRIA
Uma miragem me sustenta
em tempos de desalento.
Procuro dar-lhe a concreção da carne
mas temo o vazio
em torno da paisagem:
conheço apenas o tédio.
A hora esmigalhada
com-passada
marca a cada passo
o vôo do pássaro
e as asas do sonho
(partidas).
Durante anos busquei
o encontro
mitigando silêncios
maturados no desamor.
Durante anos
tenho tentado planos
tão confusos
escutado gritos
incendidos do pecado
à beira do abismo.
Mas eis aqui o resultado
de todas as rondas:
a face da traição
(gargalhada do ódio)
e o estertor da solidão
(lacrimejar da dor).
Assim me exponho
(e proponho) ao tempo
solitário clarim madrugada
em notas pelos muros.
Durmo no chão
perseguido na esquina
da violência inimiga.
Meto-me em ruas
sem nome em roupas
que não são minhas.
Ouço bater os portões
de casas não construídas
entre países e ruínas.
Assim me cruzo e divido
com outros no labirinto.
E ainda assim eu sonho.
Brumas de sol
entrecortando o túnel
do tempo.
Tudo em mim
foi em falso e dúbio.
Falto de ódio
ordenei ao povo
odiar nas ruas.
Falto de amor
marquei encontro
na esquina dos amantes.
Agora tudo é tão claro.
Na noite do meu corpo
sem estrelas
chego enfim ao porto
das lembranças esquecidas.
O fim da jornada
é sempre o reinício
de novas rupturas
entre corpo e espírito.
Sei que o recomeço é atraente:
condensa a ousadia dos inícios
e a cautela dos fins.
Mas até quando
reconhecer/recomeçar
será em mim
o inelutável ciclo
das opções mal feitas?
Recolho-me aos jazigos
perpétuos da memória
para delir
solitário em dor.
Recife, setembro/76-julho/2002.
Chico de Assis
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